Isnaba


"Estaciono o carro. Guardo o tablet- cujo GPS me orientou até aqui- depressa na mala, não vá ninguém estar a ver-me e ainda ser assaltada. O prédio, no bairro social com má fama, não tem varandas. Fico sem fôlego a subir as escadas até ao terceiro andar.


Bato à porta, nervosa. Relembro-me do horror das "visitas domiciliárias" que era obrigada a fazer enquanto trabalhei na Casa Pia. Não gosto de ser invasiva mas a enfermeira que me acompanha pediu-me ajuda. Irá fazer o penso ao rapaz que tem uma escara no pé. Das feias. Seria importante eu conhecê-lo, diz ela. Voltei a ser psicóloga social.

Lá dentro o Isnaba abre-nos a porta. A casa imaculada e limpa tem poucos móveis, importante para que o Isanaba se consiga mover à vontade, na sua cadeira de rodas. 17 anos, cor de chocolate, grande, extraordinariamente bonito. Recebe-nos com um sorriso.

Olha-me nos olhos, não me teme. Foi atropelado na província, lá na Guiné e ficou paraplégico. Ri perante as minhas tentativas de arranhar o crioulo, que a minha amiga Catarina me ensinou. Veio para Portugal tentar voltar a andar, o pai morreu entretanto e o tio paterno prometeu fazer tudo por ele. E fez. Trouxe-o para Portugal, mudou toda a sua vida para perseguir o desejo do sobrinho voltar a andar, trouxe a mulher, depois as filhas, a mais velha chegou há um mês. Já não via os pais há muito tempo mas sabia que os pais vieram fazer o que tinha que ser feito, ajudar o primo, porque a família é responsabilidade de todos. A mãe do Isnaba e os irmãos ficaram lá na Guiné, telefonam-se quando há dinheiro.

O Isnaba não se queixa. Adora o tio. Serve de skate humano para a prima pequenina, que se põe em pé no seu colo, enquanto ele faz deslizar as rodas da cadeira. São oito pessoas agora lá em casa para três quartos. Um é só para o Isnaba, os outros membros da família desdobram-se entre beliches, esteiras no chão e um sofá de pele corcomida que lhes ofereceram. Nunca se queixam. "Quando eu começar a andar vai valer a pena o sacrifício de todos. Vou compensá-los".

O Isnaba não vai à escola desde que saiu do hospital. As enfermeiras do centro de saúde têm-lhe feito o penso ao domicílio. Sente falta de ver gente diferente, sorri o Isnaba e pisca-me o olho, galanteador. "Às vezes- todos os dias- venho aqui para a janela e vejo a vida lá fora. Tenho saudades da chuva. Na Guiné chove muito, sabe?". A Câmara Municipal está a tentar encontrar um apartamento num rés-do-chão para a família do Isnaba, em que uma simples rampa possa ser a ponte para o mundo, ainda que um mundo sobre as rodas que, dificilmente, abandonará.

Entretanto, faz-me um click: um computador. Preciso de um computador com ligação à Internet. Um computador que lhe traga notícias do Mundo, vídeos da Guiné, quem sabe a integração num projecto de tele-escola. Preciso de um computador que lhe traga um facebook, poder reencontrar os ex-colegas da enfermaria do hospital, novos amigos. Preciso de abrir o Mundo para o Isnaba, ainda sem chuva, ainda que abrindo-lhe apenas mais uma janela.

O Isnaba não sai de casa há meses, um ano talvez e os seus 17 anos fazem-no crescer e um dia o Mundo talvez não lhe caiba. Preciso de um computador para lhe devolver, devagarinho, o Mundo. Um computador. Para começar."   Pólo Norte   http://quadripolaridades2.blogspot.pt/2013/02/isnaba.html

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