Ver com olhos de sentir

Estava eu sentada num banco de madeira, na estação de Santa Apolónia, quando o tempo me fez ir buscar muitas memórias. Era muito miúda, muito mesmo, quando chegava àquela estação, já de madrugada. Muitas vezes era noite cerrada. Era miúda. Lembro-me de que a partir dali, seguia para a terra do imaginário, para lá da vinha, para lá do rio. Lembro-me de ir com meias até ao joelho e laçarotes na cabeça. Lembro-me de sentir em mim, o andamento do comboio. Lembro-me de parar em todas, e adivinhar as terras com os meus pais. Lembro-me do regresso, com o coração cheio, com coisas boas de saborear, para não esquecer o que tínhamos vivido. Santa Apolónia será para mim, a porta de entrada, para umas férias de sonho. Para ir ter com a minha gente. E hoje sei, que esses foram os meus tempos dourados. Em que os meus estavam comigo, e os sonhos imperavam. Estou sentada e olho para tudo. Sinto tudo. Desejo voltar atrás, à inocência de outros tempos. Onde eu achava que o Amor seria tudo, para todo o sempre. Não que não o seja, embora seja mutável. Olho e anseio pelo regresso do meu pai. Sinto-me ansiosa. Quando o levo, gosto de acompanhá-lo até ao lugar, gosto de o deixar sentado e confortável. Quando o espero, desejo muito abraçá-lo. Para mim um abraço, é uma ponte entre sentimentos, onde os dois se tornam um só. Vejo o comboio chegar lá longe. E nem sei em que linha vai, porque estou tão ansiosa, que viro atabalhoada. O comboio chega, e vejo mais pessoas à espera como eu. Pessoas novas, pessoas velhas. Ver todas as pessoas a descer, é algo de mágico, muito melhor que Hogwarts. E é aqui que a magia acontece. As pessoas descem, vão ao encontro de quem espera, e dá-se a partilha de um abraço, ligando sentimentos de saudade, alegria, felicidade. É mágico. Eu poderia muito bem chorar, só de estar presente naquele preciso momento. É lindíssimo. A partilha de afetos, é o bem mais precioso, que o humano tem. O amor pelo outro. Para não parecer parola, engoli um pouco de ar seco, e começo a olhar para as carruagens. Estou na primeira carruagem...olho bem lá para o fundo e nada. Penso logo no pior. Adormeceu, perdeu-se, sentiu-se mal, etc... E cada vez mais ansiosa. A linha fica vazia. Mas que é isto, pergunto-me eu!? Pego  no telemóvel, e ligo, nada. Lá longe, na última carruagem, tinha de ser a ultima das sete. Desce, pequenino, de 1m 50, com a sua barriga proeminente, e descansado tira mala a mala. Vou ter com ele. Dou-lhe um abraço. Ele abraça a medo. O meu pai é daqueles que se abraçarmos por mais de x tempo, desmonta. Temos de manter a postura. Tenho sim a quem sair. Nós os dois temos um tempo. O tempo do abraço. Que se passar, desmontamos. Mas eu sou a gulosa dos abraços. Eu abraço muito. Eu toco muito. Afago-lhe muito o rosto. Está velhinho, o senhor meu pai. Cabelo grisalho. Está lindo como nunca. E abraço mais e mais. Ajudo-o a levar as malas, claro está carregado como tudo, porque ninguém diz que não a um vinho do douro, ainda caseiro. E vamos nós na conversa. Não me lembro de deixar de abraçar. Não me lembro de deixar de dizer exatamente, o quanto ele é importante para mim. As saudades que tenho dele. Dos nossos pequenos-almoços, das nossas conversas boas. Seguimos. Escolhemos sítio para repasto, que nisso ele é barra. Almoço de três horas. Conversa boa, muito boa. Rir, do bom rir. E sinto-me completa e feliz por sabe-lo perto de mim. Por o ver. Por o poder abraçar. Por receber e dar amor.
 

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