Leaves of Grass

Jabo está internado no Hospital de Harewood, em Washington, em 1866, com tuberculose. A guerra já acabou há meses e quando Whitman redige esta carta resta menos de um ano de vida ao soldado que, através dela, se despede da família. Jabo e a mulher, Adeline, tinham seis filhos.“Tens de me desculpar não ter escrito ainda… Mas não tenho estado bem”, diz à mulher, explicando-lhe que, embora tenha sido já dispensado do serviço militar, não está ainda em condições de viajar devido a uma doença que lhe afecta os pulmões. “Espero que tentes escrever de volta mal recebas esta carta para me contares como estão todos… Espero que seja da vontade de Deus que ainda nos voltemos a encontrar”, continua, terminando mais à frente: “Bom, despeço-me com amor e agora tenho de acabar [esta carta]… O teu marido afectuoso.”
Depois desta despedida estão as duas linhas que deixaram estupefacta a bibliotecária Catherine Wilson, que faz parte de um grupo de mais de 60 voluntários a trabalhar para os Arquivos Nacionais norte-americanos, passando a pente fino e digitalizando os registos de pedidos de pensões feitos por familiares de militares que morreram na Guerra da Secessão: “Escrita por Walt Whitman, um amigo.”
Wilson, que lê com atenção todas as cartas que tem encontrado, nem queria acreditar no que tinha na mão, contou ao jornal norte-americano The Washington Post. Mostrou-a de imediato à supervisora do projecto, a arquivista Jackie Budell, que procurou especialistas que a pudessem autenticar. E que começou logo a reconstituir a vida deste soldado que nasceu na fronteira com o Canadá, inscrito no registo militar como Robert Narcisse Gibeau e cujo primeiro nome seria Nelson (Whitman usa-o ao assinar a carta por ele).
A carta agora descoberta faz parte dos pedidos de pensões porque, explica Budell, a sua viúva tê-la-á usado para provar que os problemas de saúde do marido decorriam do facto de ter combatido. Jabo – assim fica conhecido entre as tropas – sofreu, aliás, muitas outras complicações de saúde, mesmo antes do fim da guerra, mostram outros documentos. E acabaria por morrer quando estava ainda na casa dos 40.
O poeta corajoso
O autor de Leaves of Grass (Folhas de Erva em Portugal, editado pela Relógio d’Água e pela Assírio & Alvim) viajara para a frente em 1862 para cuidar do irmão que, tendo-se juntado ao exército da União para combater os estados esclavagistas do Sul, fora ferido, explica Kenneth Price, especialista na obra do poeta, nas páginas do diário britânico The Guardian. Embora Whitman mencione várias vezes nos seus diários e notas que escreve cartas aos soldados feridos e moribundos, apenas três foram identificadas até hoje, diz este académico, classificando esta descoberta, “pela sua raridade e natureza comovente”, como “significativa”.

Price, que é professor universitário e co-director do arquivo de Walt Whitman, conhece bem a letra do poeta e diz ter “muito poucas dúvidas sobre a autenticidade da carta”. Acrescenta ainda que é natural que o autor tenha ajudado o soldado, muito provavelmente analfabeto ou, pelo menos, iletrado, a organizar o discurso. “Palpito que Whitman tenha tentado canalizar o sentido e o espírito do que Jabo queria transmitir”, acrescenta, defendendo que o poeta não quis de forma alguma usar uma “linguagem pomposa” porque isso não seria “fiel” à sua natureza nem à do soldado que na carta se despedia daqueles a quem mais queria.
O trabalho que Whitman fez durante parte da Guerra Civil Americana (1861-1865) e até mesmo um pouco depois, junto dos doentes, foi para Kenneth Price “extraordinário”, isto porque, explica, os hospitais eram à época lugares realmente perigosos. “[…] O tempo que passou a visitar soldados foi corajoso e generoso. Poucos escritores teriam sacrificado tanto tempo no auge da sua carreira literária.” A sua colectânea de poemas, Leaves of Grass, tivera a sua primeira versão publicada em 1855.
“As suas visitas aos hospitais foram actos de amor que permanecem francamente inspiradores.” Levava aos doentes fruta, doces, tabaco, brandy, jornais e dinheiro e não se negava sequer a escrever cartas de amor, admitiu numa nota que remeteu ao diário The New York Times em 1864, agora citada pelo Washington Post: “Alguns escrevem muito mal, outros não conseguem arranjar papel… Muitos… temem preocupar os que deixaram em casa – o que sobre eles podem contar é tão triste.”
Quando estava em Washington, lembra o Guardian, este poeta, que trabalhou como jornalista e editor e assinou também textos de ensaio, integrava os quadros do Departamento do Interior, na qualidade de escrivão, cargo de que terá sido despedido, acreditam os biógrafos, porque o então secretário responsável, James Harlan, considerava Leaves of Grass um livro obsceno.
O volume, que o autor escreveu e reescreveu durante boa parte da sua vida, é hoje tido como uma obra fundamental da literatura americana mas, no seu tempo, foi alvo de duras críticas. O gosto generalizado pendia para uma poesia habituada a alegorias, que louvava o espiritual e o religioso, ao passo que aquilo que Withman tinha para oferecer fazia a exaltação do corpo e da natureza, embora sem nunca esquecer a capacidade do homem de pensar sobre o que o rodeava. A sua era uma poesia que evocava os prazeres dos sentidos, o que para muitos foi considerado “imoral”.
Escreve o Washington Post que, em Dezembro de 1866, 11 meses depois de Walt Whitman se ter sentado a seu lado para lhe escrever a carta, Jabo viria a morrer num hospital, sem dinheiro e longe da família. Só em 1874 Adeline começou a receber a sua pensão de viuvez 12 dólares por mês.
O soldado desta carta é apenas um dos muitos que o poeta terá ajudado. Entre eles está também Erastus Haskell, um jovem de 19 ou 20 anos que terá visto morrer com febre tifóide e sobre quem escreveu: "Este homem está deitado de costas ao meu alcance... com o cabelo preto grosso cortado rente... a cada respiração um espasmo... Parece tão cruel. É um jovem nobre... Muitas vezes não há ninguém com ele durante muito tempo. Estou aqui sempre que posso."

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