Artigo

Mudam-se os tempos, mudam-se os corpos
Da gordura que é formosura ao 86-60-86 de Sofía Aparício, só não vale ceder às pressões de objectivos irrealistas.

Sarah (Saartjie, o diminutivo) Baartman foi uma mulher que nasceu, possivelmente antes de 1790, na África do Sul, que se tornou conhecida como "a Vénus Hotentote". A indígena foi levada da província do Cabo para a Europa por holandeses para ser exibida a troco de dinheiro. Morreu pobre e doente em Paris, em 1815.





O interesse em exibir Saartjie nas diferentes capitais europeias residia no seu ar exótico, com características físicas pouco comuns, nomeadamente nádegas exuberantes pela grande acumulação de gordura e características genitais particulares. Baartman tornou-se num ícone da África do Sul, país que reclamou os seus restos mortais ao Museu da Humanidade, e a sua história é um exemplo da opressão sofrida pela mulher (e especificamente, da mulher negra).

Sensivelmente pela mesma altura, os dois "Meninos Gordos", Ana e Mateus, viajavam de Itália para Portugal, entre 1840 e 1842, para serem exibidos. Mateus, de 11 anos, que pesaria 201 kg, e Ana, de 9 anos, com 129 kg. Naquele período, a sociedade aceitava que indivíduos com deformações físicas ou determinadas particularidades pouco habituais do corpo pudessem ser mostrados a troco de dinheiro.

Ao longo do tempo e das culturas, as definições sobre o corpo desejável têm variado. Há milhares de anos atrás, uma forma corporal feminina tipo pêra, com ancas largas e nádegas volumosas, foi bastante admirada pelos homens e a gordura da mulher era símbolo de fertilidade.
Na Europa até ao fim da Idade Média, a arte aponta para vários ideais de corpo, observando-se mulheres com pernas curtas e barriga arredondada, lembrando as formas da gravidez, num momento em que a humanidade era ameaçada por doenças contagiosas. A arte dos séculos XVI e XVII, como a de Leonardo da Vinci, Raphael ou Rubens, por exemplo, mostra corpos com ampla dimensão, mas também outros mais pequenos, como em Bronzino ou Cellini, sem atingir a magreza.

Rubens

 
A partir do século XVIII, com a estabilização da disponibilidade de alimentos, ter contenção na ingestão de alimentos traduzia requinte e distinção. A meio do século XIX, com o fervor da industrialização, a moda mostrava imagens jovens, delicadas e celestiais, em que apenas a cintura era delgada, e um apetite mais voraz podia ser considerado pouco feminino. Mas com as primeiras feministas surgem também movimentos “anti-ideal de beleza”, e uma silhueta mais volumosa, num corpo rosado e mais forte, podia ser mais popular do que uma aparência frágil e pálida.
Com o afastamento entre a vida sexual e a função reprodutiva, a magreza aproxima-se da sexualidade e ser magro traduz afastamento do trabalho físico, algo que é apreciado em meio urbano, mas não em meio rural por lembrar tempos difíceis de escassez alimentar.

Nos anos de 1960, a cultura hippie ajudou à instituição de uma imagem “natural” de “juventude” e, nos anos de 1970, a moda tomou a forma de Twiggy, uma adolescente inglesa de 41kg e 1,70m. Nos anos de 1980, a silhueta evoluiu para uma imagem mais “musculada”, mas delgada, que requeria exercício físico e cuidados alimentares.

Presentemente, ombros largos e barrigas musculadas podem ser também padrões de beleza feminina e, ironicamente, apela-se ao controlo do peso num contexto de ingestão que facilita o consumo de alimentos que desafiam essa regulação. Nestas circunstâncias, é importante salientar a importância de uma boa alimentação e actividade física para um corpo saudável e desconfiar de pressões que nos levem para objetivos irrealistas de peso e forma corporal.

Pedro Moreira

Nutricionista e Professor Catedrático da Faculdade de Ciências da Nutrição da Universidade do Porto

Daqui.

Comentários

Vício de Ti disse…
Muito bom! Estava a ler e só me lembrava dos corpos pintados por Rubens, tão cheios de curvas :)
Solana disse…
Olá V.,

Gosto muito das pinturas dele!

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