Uma carta minha, mas não boa como eram as tuas
São muitos os trinta e tal anos que nos fazem ser parte uma da outra.
Por vezes penso, no quanto era tão mais fácil, quando éramos ainda
miúdas, corríamos pelos campos verdes, cheios de papoilas, lírios roxos,
azedas, e aquelas flores lilases que eram tão docinhas, aquele brincar
inocente com nenuncos. Frequentávamos a casa uma da outra. Não havia
portas fechadas. Não havia a tua casa, nem a minha. Havia alguidares de
água, havia jogos sem fronteiras. Recordo, a cadeira de baloiço da tua
avó. A tua avó, que também era um pouco minha. Recordo o bolo da amizade
que te fiz, porque eras e és uma alucinada por doces, um bolo rosa.
Acho que, sempre nos conhecemos. Lembro-me de ti, desde que me lembro de mim. Mesmo
seguindo alguns percursos diferentes, os mesmos insistiam em cruzar-se, e
estávamos sempre em contacto, em permanente contacto. Recordo-me de
tantas conversas, de tantas cartas que escrevemos, uma para a outra. De
tantos passeios que fizemos. A Guilheiro, e principalmente por causa do
licor Pisang Ambon. De tantas as vezes
que nos chateamos, por causa da
imaturidade mas é mesmo assim. Lembro-me de quando tive o meu primeiro
namorado, e que foste a minha primeira confidente. A pessoa com quem eu
partilhei muitas coisas. Eras a minha explicadora de matemática, not.
Tínhamos daquelas amizades boas, muito boas. Começamos depois a
trabalhar juntas. E aí correu tudo muito melhor. Descobrimos o casal
garcia à hora do almoço, ninguém merece. Vimos muitas vezes o por do sol
juntas. Melhor seria impossível. Contigo, surgiu o há sol no guincho.
Cúmplices no seu melhor. No nosso melhor. Fugíamos do nosso patrão. A
nossa primeira viagem a Londres. Despediram-te injustamente, numa altura
em que regressavas de auxiliar o teu pai que tinha tido um enfarte, e
eu despedi-me logo a seguir. Começamos à procurar de emprego no jornal,
no bar do guincho, com um belo almoço, seguido do por do sol e rimos.
Rimos de medo do futuro, de alivio. Não gostávamos nada do nosso patrão.
Abdicaste de um sentimento teu, para não me magoares, porque sabias que
esse alguém não me era indiferente. Tu és uma das pessoas que sempre foi
além de qualquer expectativa que eu tinha. Sempre mais além. E a vida
tem coisas maravilhosas. E como acredito no que tem de ser, é.
Casaste-te com ele. Foste ao meu casamento, uma das melhores prendas que
recebi. E pude ajudar organizar o teu. Partilhamos gravidezes. Ontem,
estive contigo. Deixa-me que te diga, uma ou duas coisas. Eu já te
falhei, assim em grande escala. Muito, eu sei. Já te pedi desculpa. Mas
se há coisa que não sou, é sonsa e cínica. E eu acho, que me conheces, e
bem. E acho que no fundo sabes como sou. E acho que se não és a única,
és quase a única que sabe como me sinto e sou como pessoa. Porque sempre
me disseste. Não sei se te lembras, mas eu lembro-me perfeitamente.
Posso andar meia desaparecida, porque sou assim meia aérea, mas é sem
maldade. Sou despassarada. Mas sabes, que gosto de ti. Gosto mesmo. Como
se fosses parte de mim. E que te quero imensamente bem. És sem dúvida,
uma força da natureza, uma mulher de armas! Que eu admiro, que adoro. E
penalizo-me se não fui aquilo que precisaste, que eu fosse. Se não
estive lá. Pergunto-me se foi preciso acontecer tudo isto, para eu
reaproximar-me de
ti...não sei, talvez ...por culpa minha... enfim...mas há coisas que
não se
explicam. Em miúdas era tudo tão mais fácil. Gosto muito de ti. Ontem,
foi só mais uma confirmação, do quanto és importante para mim, tu e o
Pedro e o vosso bem estar e de todos aqueles que vos rodeiam. Que não me
interessa o tempo, eu sei onde estás, a importância que têm para mim,
basta ligar, e vou até ti e espero que saibas bem o caminho para vir ter
a mim.
Abracei o Pedro com o maior carinho do mundo, amizade e bem querer, de
quem lhe quer muito bem. E como te disse, nunca, mas nunca, me vou
esquecer o que fizeram por mim, porque se há coisa que eu tenho, é
memória de elefante. E vou ser sempre, sempre eternamente grata. Sei que
por vezes sou um misto de contradições em atitudes, e tento fazer o
melhor, mas nem sempre acerto. Que por vezes magoou as pessoas, eu sei,
mesmo sem querer, mas acontece. Quero-te muito bem. Muito. A ti e aos
teus. Tanto, como desejo a mim. Ou mais.
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