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Christmas blues
É um ritual de família e de reencontro, de união e comunhão, de amor,
de «ninho». E é isso que torna a época feliz e especial. Mas são estas
mesmas razões que também podem torná‑la um dos momentos mais difíceis do
ano. Basta que, em vez de amor, haja desavenças. Ou que o «ninho» não
exista ou esteja vazio. «Frequentemente, a tristeza, a culpa e a
ansiedade sentidas nesta época têm que ver com um desfasamento entre as
expetativas que interiorizámos do que deveria ser o Natal – enquanto
festa religiosa e de comunhão de afetos – e aquilo que muitas vezes
acabamos por vivenciar», diz o psiquiatra João Parente. Durante o resto
do ano, tudo isto é mais fácil de ignorar. No Natal, quando as páginas
das revistas e os anúncios na televisão se enchem de famílias felizes
debaixo do pinheiro e os amigos extravasam todo o entusiasmo com a
perspetiva da reunião familiar, toda a felicidade dos outros parece
servir apenas para que alguns recordem (ainda) mais o que está em falta
nas suas vidas.
A época de Natal é tipificada como a festa em que a família se reúne,
se revê e confraterniza. «Mas se se tiver perdido um ente querido é
natural que esta época reavive os sentimentos de luto e de saudade e
que, dependendo do caso, podem ser avassaladores», diz o psiquiatra João
Parente. Para Hugo, era assim e todos os anos o padrão se repetia: «À
medida que o Natal se aproximava sentia‑me mais distraído no trabalho,
cansado, apagado, isolava‑me, tinha menos paciência para as pessoas ».
Em dezembro tirava sempre férias durante o mês quase todo e partia.
Austrália, Estados Unidos, Argentina e Moçambique foram os destinos dos
anos seguintes. «Só em janeiro
sentia um alívio, era uma página que se virava.»
Christmas blues
Os dados que existem sobre o Christmas blues, essa tristeza
sazonal por altura do Natal, são vagos e pouco certos, sobretudo porque o
sentimento não está propriamente catalogado como uma patologia mental.
Os dados do National Institute of Health, nos Estados Unidos da América,
apontam o Natal como o período do ano no qual há uma incidência maior
de depressão. Mas esta tristeza de Natal, apesar de ter sintomas
idênticos, não significa necessariamente um quadro depressivo. «O Christmas blues
é habitualmente passageiro e não tende a evoluir para um quadro clínico
de depressão. Passada a época festiva, e com o retomar das rotinas
habituais, os sentimentos de tristeza tendem a desvanecer‑se e a remitir
naturalmente», esclarece João Parente.
Muitas vezes o Christmas blues pode manifestar‑se pela falta
de vontade em estar com os entes queridos e no desconforto em festejar,
como acontecia com Hugo. Outras, o problema reside precisamente no
oposto. Não faltam aqueles que tudo o que queriam era poder estar e
festejar, mas são esquecidos. Num país cada vez mais envelhecido – de
acordo com o Instituto Nacional de Estatística (INE), em 2013, o índice
de envelhecimento da população foi de 136, ou seja, por cada cem jovens
existiam 136 idosos – o problema da solidão é cada vez mais premente.
«Num mundo que se globalizou, não é raro que haja familiares emigrados
em países longínquos e que não podem estar presentes, e essa ausência
pode ser antecipada e sentida com tristeza e saudade», diz o psiquiatra
João Parente. «E uma parte significativa da população idosa vive
sozinha, sem grande apoio familiar e os sentimentos de solidão física e
afetiva tornam‑se mais evidentes nesta época festiva.»
A família que já não está
Rosa Melo tem rugas e cabelos brancos suficientes para já ter visto muito e ouvido mais ainda. Do Christmas blues
nunca ouviu falar e psicoterapia também nunca fez. Tem 82 anos e o que
sabe é isto: sente‑se sozinha. No Natal, como no resto do ano. Vive em
Fenais da Ajuda, na ilha de São Miguel e sente‑se satisfeita por alguém
lhe perguntar o que sente. Partilha as suas dores, que não são poucas: é
viúva há oito anos e perdeu o único filho que tinha há dois. «Ele
estava na América. Era da tropa e fizeram‑lhe um daqueles funerais muito
bonitos em que se põe a bandeira americana por cima do caixão. Eu não o
via no Natal, mas sabia que ele estava bem e ouvia‑lhe a voz porque ele
ligava‑me sempre.» Os netos, todos nascidos por lá, têm nomes como John
e Steve. Sabe‑os bem, mas não os vê. Sem marido, sem filho e com uma
irmã que vive perto mas de quem está afastada por desavenças familiares
antigas, o Natal de Rosa é na solidão. «Há um sobrinho do meu marido e a
mulher que passam aqui um bocadinho na véspera de Natal a deixar‑me uns
bolinhos. Ficam muito pouco tempo, mas é o tempo que podem. Depois têm
de ir à vida deles fazer o Natal com a família.»
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