Dias de chuva

Chegaram. Na verdade já tinham chegado.
A chuva limpa tudo. Menos a alma. Pelo menos a minha. 
Mostra-nos exactamente o que estava escondido por trás daquela poeira, que insistimos em manter.
Passam-se os dias, e continua-se a pensar que está tudo bem.
Que é normal, o percurso da vida.
Ficar sem os dois pais. É duro, dizem-me, mas é a vida. 
Não é a vida! 
Lamento.
Todos os dias tento convencer-me, que é assim. Que ele não sofreu. Que ele está com a minha mãe.
E todos os dias tenho vontade de ficar na cama. A olhar para o nada.
Custou-me imenso a perda da minha mãe.
É um dor que nos fere, mas que foi ficando amparada pelo meu pai.
Ninguém me avisou que ele ia tão cedo.
Sei que não era novo, mas também não era velho.
Como ele dizia, irei viver até aos 100.
E pergunto-me muitas vezes quem está aí em cima, a tomar conta de nós.
Quem?
Quem achou, que eu estaria bem para perder o meu segundo pilar?
Até hoje, nem sei dizer como me sinto.
Exigem-me ser adulta. Mas ser adulta é sofrer?
Na verdade, até tenho medo de destapar tudo o que enterrei.
A dor assusta-me.
A perda aterroriza-me.
Às vezes fico parada a olhar para o quarto deles. Penso, porque, porque me abandonaram?
Lembro-me das mãos gordas do meu pai, e secas. O que eu ralhava porque não queria usar creme.
Lembro-me dele a sorrir.
Lembro-me das meias de leite dele, cheias de espuma.
Talvez por isso, não consiga tomar pequeno almoço em casa.
Falta-me ele.
Falta-me tudo. 
Ás vezes finjo, que está tudo bem.
Sei que não está.
Sinto em mim, um desespero profundo de o ver, de o abraçar.
Não é justo, não ter os dois.
Olho para a fotografia deles, e penso, porquê?
Sinto-lhe uma falta, que não sei medir.
Finjo e finjo muito, estar tudo bem.
Talvez porque não sei fazer melhor, não saiba gerir.
E só eu sei, o quanto me custa levantar da cama, e estar na casa deles, agora minha.
Troquei pratos, troquei talheres, mas não troquei de coração.
E eles estão em mim.  
E eu preciso deles.
Esta é a verdade.
O meu maior medo na vida era ficar só.
Estou só.
Não que esteja. 
Mas é assim que me sinto.
E engulo a seco.
Choro muitas vezes sem lágrimas.
Passo pelas ruas, que viram os meus pais passar e sei se não vai voltar a acontecer.
Ontem pintava a casa, como o meu pai fazia. 
Olha para mim, crescida e sem pais.
Sem pais.
Órfã.
Mas que raio é isto de ser órfã.
Não é questão de ficar só. Já nem sequer é só isso.
É a questão do afecto, do amor, dos teus.
E corta-me por dentro, uma lamina afiada, quando me lembro que não os tenho.
E penso no porquê?
O porquê?
E depois tento ser racional e pensar, que há pessoas com vidas piores, que a vida é assim, e as tretas todas que me ajudam a manter à tona da água, para não me afogar na dor.
Mas a verdade está aí.
Chego a casa, silêncio.
Não oiço risos.
Não recebo chamadas do pai, a pedir para comprar pão.
Não oiço a minha Bela isto ou aquilo.
E isto dói.
E finjo grande parte do tempo.
Para não chorar, como estes dias de chuva.
Porque é tanto, para uma pessoa só, que já começo a duvidar, se o sol irá espreitar.
Amo tanto os meus pais, que foi tão pouco o tempo que os amei. 
Tão pouco.
Quero muito o seu colo.
Quero muito o seu sorriso.
Quero muito que me digam que sou rija, e dura e que vou conseguir suportar tudo.
Quero muito eles de volta. Para mim. 
Quero voltar a dormir com eles na cama, ao domingo de manhã.
Quero voltar a dar muitos beijinhos. Quero que me chamem beijoqueira.
Quero afagar o rosto da minha mãe.
Quero ralhar pelas mãos secas do meu pai.
Não quero acreditar que a vida seja só sofrimento.
Não posso acreditar.
De todas as coisas menos boas que acontecem na minha vida, vou guardando em caixas.
Por uma questão de sobrevivência. 
Não consigo tudo.
Nem quero poder conseguir.
Estou para lá de cansada. Talvez descrente. Exausta.
O que me salva é o meu filho. 
E talvez a fé de acreditar que os meus pais estão comigo, mesmo que não os veja.
Mas é tão difícil. É tão difícil ter fé. Quando os queremos para nós.
Quando a vida nos prega, farpas, atrás de farpas. Tu ergues-te, tu apanhas.
E ninguém me avisou, que ele partiria.
Nada mudaria...eu sei. Mas não queria que tivesse sido já.
Precisava dele, tanto quanto preciso da minha mãe.
Não sei ser órfã.
Sei a dor que sinto todos os dias, por não os ver.
Sei o que é chorar sem lágrimas.
Sei tanto que magoa, tudo o que sei.
O ser feliz está lá longe. Porque hoje tudo me parece cinzento. 
Não quero ser ingrata para com a vida, nada disso, porque tem a sua magia...esteja ela onde estiver. 
Mas é difícil, ficarmos alegres com um carro, um por do sol, quando depois não temos com quem partilhar.
Não temos os nossos.
Que nos conhecem do avesso. Os da carne. Os que nos pariram.
É duro.
Todos os dias levantar, depois de levar porrada da vida.
A saudade aumenta.
A realidade vai perfurando cada vez mais o coração.
E ela está aí.
A dizer-me para abrir os olhos....porque ela está aí.
A verdade da realidade.
E eu, órfã, tenho de aceitar, mesmo que dilacerada. Tenho de aceitar.
Fazem-me falta, tanta falta, que dói, mesmo sem perceber a escala da dor. Sem querer perceber.
Amor-vos para todo o sempre. 
Quero-vos para todo o sempre.
Carne da minha carne,
Sangue do meu sangue.


Comentários

Mensagens populares