"Tantas Inezes e tantos Joões"
Os adultos são realmente modelos e referências… mas, por vezes, também exemplos de até onde pode ir a estupidez humana.
“É As classes dominantes, durante muito tempo, exerciam o poder através da herança genética, da força, do nome ou da cultura. Hoje, infelizmente, alguns grupos, designadamente aqueles que “são importantes porque aparecem e aparecem porque são importantes”, inventam códigos que autodefinem como “passaporte” para se poder entrar nessa “casta superior”. Se fosse só ridículo, era como o outro… mas o pior é que inquina as crianças e as suas relações interpares.
“A minha mãe diz que dizer prenda é foleiro” - sentenciou a Inês, de cinco anos.
“Mas a minha diz prenda...” - murmurou o João, da mesma idade, sentindo-se humilhado.
“É foleiro. Foleiro e piroso” - continuou a miúda - “porque gente como nós diz ´presente´.”
“Eu digo prenda!” - e o João teve um acesso de raiva e de defesa da honra.
“És foleiro. Se calhar também dizes vermelho, não? Só falta…”
Tantas Inezes e tantos Joões. Ou, melhor, tantos pais e mães de Inezes, que ensinam aos filhos essa estranha divisão do mundo entre “gente como nós” e “a outra gentinha, o povo”, caindo no disparate e... no ridículo… mas, pior, fomentando ódios interclassistas e estimulando a parte mais odiosamente narcísica do ego das crianças.
A Língua Portuguesa é rica e as palavras, embora sinónimas, têm nuances históricas ou filológicas que justificam o seu uso diverso. Todavia, muitas vezes a questão nem é de escolha: é que o significado é mesmo diferente: a cor vermelha não é a cor encarnada: a primeira é mais fechada, com mais toques de castanho e de roxo, a segunda é mais aberta, com mais branco.
Quanto à crítica que a Inês fez ao João, também ela é insensata, para além de revelar (da parte de quem a ensinou que dizer ´prenda´ é foleiro e ´presente´ correto) ignorância que, pelos vistos, não joga bem com a auto-classificação de “casta superior” (a tal “gente como nós”).
Um presente é algo que se dá como manifestação de afeto, para dizermos que estamos e estaremos sempre presentes através daquele símbolo e de cada vez que ele for usado. No Natal, nos anos, em que damos pelo gosto de dar, estamos a falar de presentes. Como tal, quem presenteia deverá escolher o objeto que vai oferecer e deverá fazê-lo tentando adivinhar, indiretamente, o que o presenteado vai gostar de receber. No fundo, fazendo-o com o sentimento de: “escolhi uma coisa de que creio que gostarás, e espero que te lembres de mim, e de como gosto de ti, sempre que a vires ou utilizares. Estou presente”.
Por outro lado, uma prenda é algo que se dá porque “o menino é prendado”, ou seja, como reconhecimento de que ultrapassou o que estava esperado, porque se portou bem em qualquer atividade, porque superou as suas próprias expectativas. Merece. Conquistou. É uma prenda. E essa, sim, já poderá ser debatida com o próprio, porque é um reconhecimento das suas competências. É como dizer: cada vez que vires esta prenda, lembrar-te-ás de como és bom, e de como eu te admiro e acho que és bom.
Assim, as discussões entre Inezes e Joões devem ser imediatamente esclarecidas, na escola ou noutro local. Afinal, os pais e mães que fazem uso das palavras da Língua Portuguesa para selecionarem umas quantas que quererão como códigos de um grupo de pertença superior ou iluminado, estão a passar a si próprios um atestado de burrice, além de fomentarem discussões entre as crianças que, por elas, se preocupam mais em brincar com os amigos do que estar a defender castas ou pseudoelites.
Só para exemplo, ficam aqui alguns excertos de poemas de autores portugueses que, para algumas “tias” e “tios”, serão “uns foleiros ou possidónios porque usam a palavra “vermelho”… Diga-se, aliás, que a palavra possidónio, aliás, deriva de Poseidon, deus dos mares da Antigo Grécia, e significa: «pessoa otimista, afetuosa e cheia de vida, genial e ao mesmo tempo muito compreensiva, carismática e generosa. Gosta das coisas bem feitas, mas não esconde seus sentimentos quando identifica incompetência ou preguiça. Quando se apaixona torna-se dócil e passa a ser um amante impecável». Creio que, depois de lerem isto, as «tias» vão querer, definitivamente, ter um possidónio na sua vida! Salvaguarde-se o escritor Possidónio Cachapa, mas esse é-o de nome!
• Fernando Pessoa: “Deram-me um cravo vermelho
Para eu ver como é a vida”;
• Sophia: “Do brilho do mar e do vermelho da maçã erguia-se uma felicidade irrecusável, nua e inteira”;
• Luís de Camões: “Peito que o douto Apolo fez, vermelho;
• Eugénio de Andrade: “Também ele vai morrer, o verão. Do verde ao vermelho”;
• Manuel Alegre: “Quero escrever um poema/ Um poema não sei de quê/ Que venha todo vermelho”
• Nuno Júdice: “As coisas mais precisas, que são as nossas: o verde das folhas e o amarelo das pétalas, o vermelho do sol e o branco dos muros”
As Inezes do relato acima achariam que os «tios» Fernando, Sophia, Luís, Eugénio, Manuel ou Nuno eram foleiros, ou até o «tio» Vasco (Graça Moura), que escreveu uma trilogia intitulada “O Vermelho e as Sombras.
No fundo, passa-se o mesmo com as palavras funeral/enterro, e tantos outros exemplos da bacoquice/snobice de quem faz estas “profissões de fé”.
O problema resolvia-se se toda a gente passa a ter sangue azul, embora isto de misturar “povo” com GCN (”gente como nós”) também possa causar fornicoques a muita gente, e quando se sabe que a ideia do «sangue azul» vinha de os nobres ibéricos não apanharem sol, serem de tez branca e se verem as veias azuladas na fronte, aí as «tias» e «tios» que neste momento se tisnam ao sol (ou metidos em solários, no inverno) iam ter que recolher imediatamente às tocas, para serem coerentes...
Inês… João… os adultos são realmente modelos e referências… mas, por vezes, também exemplos de até onde pode ir a estupidez humana. "
Mário Cordeiro
Aqui.
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